quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O Cuidado


A sociedade contemporânea, chamada sociedade do conhecimento e da comunicação, está cada vez mais a criar, contraditoriamente, incomunicação e solidão entre as pessoas. A Internet pode conectar-nos com milhões de pessoas sem precisarmos de encontrar alguém. Pode-se comprar, pagar as contas, trabalhar, pedir comida, assistir a um filme, sem se falar com ninguém. Para viajar, conhecer países, visitar pinacotecas, não precisamos de sair de casa. Tudo vem a nossa casa via on line.



A relação com a realidade concreta, com os seus cheiros, cores, frios, calores, pesos, resistências e contradições, é mediada pela imagem virtual, que é somente imagem. O pé já não sente o macio da relva verde. A mão já não pega num punhado de terra escura. O mundo virtual criou um novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque, do tacto e do contacto humano.


Essa anti-realidade afecta a vida humana naquilo que ela possui de mais fundamental: ocuidado e a compaixão. Mitos antigos e pensadores contemporâneos dos mais profundos ensinam-nos que a essência humana não se encontra tanto na inteligência, na liberdade ou na criatividade, mas basicamente no cuidado. O cuidado é, na verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência. No cuidado encontra-se oethos fundamental do humano. Quer dizer, no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das acções um recto agir.


O tipo de sociedade do conhecimento e da comunicação que temos desenvolvido nas últimas décadas ameaça a essência humana. Porventura, não ignorou ela as pessoas concretas com as feições dos seus rostos, com o desenho das suas mãos, com a irradiação da sua presença, com as suas biografias marcadas por buscas, lutas, perplexidades, fracassos e conquistas? 


Não colocou sob suspeita e até difamou como obstáculo ao conhecimento objectivo, o cuidado, a sensibilidade e o enternecimento, realidades tão necessárias, sem as quais ninguém vive e sobrevive com sentido? Na medida em que avança tecnologicamente na produção e serviço de bens materiais, será que não produz mais empobrecidos e excluídos, quase dois terços da humanidade, condenados a morrer antes do tempo? 

Onde é que o cuidado aparece na nossa sociedade? Em algo de muito vulgar, de quase ridículo, mas extremamente indicativo: no tamagochi.


O que é o tamagochi ? É uma invenção japonesa dos inícios de 1997. Um porta-chaves electrónico, com três botões abaixo do écran de cristal, que alberga dentro de si um bichinho de estimação virtual. O bichinho tem fome, come, dorme, cresce, brinca, chora, fica doente e pode morrer. Tudo depende do cuidado que recebe ou não do seu dono ou dona. O tamagochi dá muito trabalho. Como uma criança, a todo momento deve ser objecto de cuidado; caso contrário, reclama com o seu bip; se não for atendido, corre risco. E quem é tão sem coração a ponto de deixar um bichinho de estimação morrer? O brinquedo transformou-se numa mania e tem mudado a rotina de muitas crianças, jovens e adultos, que se empenham em cuidar do tamagochi, dar-lhe de comer, deixá-lo descansar e fazê-lo dormir. O cuidado faz até o milagre de o ressuscitar, caso tenha morrido por falta de atenção e de cuidado.


Bem disse um perspicaz cronista carioca: “Solidão, o seu cognome é tamagochi“. Ocuidado pelo bichinho de estimação virtual denuncia a solidão em que vive o homem/a mulher da sociedade da comunicação nascente. 


Mas anuncia também que, apesar da desumanização de grande parte da nossa cultura, a essência humana não se perdeu. Ela está aí na forma do cuidado, transferido para um aparelho electrónico, em vez de ser investido nas pessoas concretas à nossa volta: na avó doente, num colega de escola deficiente físico, num menino ou menina da rua, no velhinho que vende o pão matinal, nos pobres e marginalizados das nossas cidades ou até mesmo num bichinho vivo de estimação, seja um hamster, um papagaio, um gato ou um cachorro.


cuidado serve de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador de um novo paradigma de convivialidade. É o que vamos propor no presente livro.



Sonhamos com um mundo ainda por vir, onde não vamos precisar mais de aparelhos electrónicos com seres virtuais para superar a nossa solidão e realizar a nossa essência humana de cuidado e de gentileza. Sonhamos com uma sociedade mundializada, na grande casa comum, a Terra, onde os valores estruturantes se construirão em redor do cuidado com as pessoas, sobretudo com os culturalmente diferentes, com os penalizados pela natureza ou pela história. Cuidado com os espoliados e excluídos, as crianças, os velhos, os moribundos, cuidado com a nossa grande e generosa Mãe, a Terra. Sonhamos com o cuidado assumido como o ethosfundamental humano e como compaixão imprescindível para com todos os seres da criação.


Por toda a parte surgem sintomas que sinalizam grandes devastações no planeta Terra e na humanidade. O projecto de crescimento material ilimitado, mundialmente integrado, sacrifica 2/3 da humanidade, extenua recursos da Terra e compromete o futuro das gerações vindouras. Encontramo-nos no limiar de bifurcações fenomenais. Qual é o limite de suportabilidade do super-organismo Terra? Estamos a rumar na direcção de uma civilização do caos?

Formalizando a questão, podemos dizer: mais do que o fim do mundo, estamos a assistir ao fim de um tipo de mundo. Enfrentamos uma crise civilizacional generalizada. Precisamos de um novo paradigma de convivência que funde uma relação mais benfazeja para com a Terra e inaugure um novo pacto social entre os povos, no sentido do respeito e da preservação de tudo o que existe e vive. Só a partir desta mutação, faz sentido pensarmos em alternativas que representem uma nova esperança.

O cuidado das nossas mães e avós


Existem figuras que concentram e irradiam cuidado de maneira privilegiada: as nossas mães e as mães das nossas mães, as nossas avós. Não precisamos de pormenorizar essa experiência. Ela é fundamental em cada pessoa, pois o primeiro continente que a criança conhece é a sua própria mãe. Ser mãe é mais do que uma função; é um modo-de-ser que engloba todas as dimensões da mulher-mãe, o seu corpo, a sua psique e o seu espírito. Com o seu cuidado e carinho, a mãe continua a gerar os filhos e as filhas durante toda a vida. Mesmo que tenham morrido, sempre permanecerão no seu coração materno. Nos momentos de perigo, são invocadas como referência de confiança e de salvação. É através das mães que cada um aprende a ser mãe de si mesmo, na medida em que aprende a aceitar-se, a perdoar as próprias fraquezas e a alimentar o sonho de um grande útero acolhedor de todos. Representam também o modo de ser mãe as educadoras e os educadores que se devotam ao crescimento humano, mental e espiritual dos educandos, as enfermeiras que cuidam dos seus doentes e tantas outras pessoas que anonimamente se desvelam no cuidado de alguém.

Jesus, um ser de cuidado


Jesus de Nazaré, ao lado de Buda, é uma das figuras religiosas que mais encarnam o modo-de-ser-cuidado. Revelou à humanidade o Deus-cuidado, experimentando Deus como Pai e Mãe divinos que cuidam de cada cabelo da nossa cabeça, da comida dos pássaros, do sol e da chuva para todos (cf. Mt 5,45; Lc 21,18). Jesus mostrou cuidadoespecial com os pobres, os famintos, os discriminados e os doentes. Enchia-se de compaixão e curava a muitos. Facto inusitado para a época, associou a si várias mulheres como discípulas (Lc 8,2-3). Cultivou um amor terno para com as amigas Marta e Maria (Jo 11,20-28; Lc 10,38-42).


Fez da misericórdia a chave da sua ética. É pela misericórdia que os seres humanos chegam ao Reino da Vida; sem a misericórdia, não há salvação para ninguém (Mt 25,36-41). As parábolas do bom samaritano que mostra compaixão pelo caído na estrada (Lc 10,30-37) e a do filho pródigo acolhido e perdoado pelo pai (Lc 15,11-32) são expressões exemplares de cuidado e de plena humanidade.


Morrendo na cruz, cuida dos ladrões crucificados ao seu lado e cuida de sua mãe, entregando-a aos cuidados do discípulo predilecto João (Jo 19,26-27). Jesus foi um ser de cuidado. O evangelista Marcos diz com extrema finura: “Ele fez bem todas as coisas; fez surdos ouvir e mudos falar.” (Mc 7,37). Teve cuidado com a vida integral.

Que alquimia forjará o elo entre Júpiter, Tellus/Terra e Saturno? Que energia articulará a transcendência e a imanência, a história e a utopia, a luta pela justiça e a paz, para que construam o humano plenamente?


É o cuidado que enlaça todas as coisas; é o cuidado que traz o céu para dentro da terra e coloca a terra dentro do céu; é o cuidado que fornece o elo de passagem da transcendência para a imanência, da imanência para a transcendência e da história para a utopia. É o cuidado que confere força para buscar a paz no meio dos conflitos de toda a ordem. Sem o cuidado que resgata a dignidade da humanidade condenada à exclusão, não se inaugurará um novo paradigma de convivência.


cuidado é anterior ao espírito (Júpiter) e ao corpo (Tellus). O espírito humaniza-se e o corpo vivifica-se quando são moldados pelo cuidado. Caso contrário, o espírito perde-se nas abstracções e o corpo confunde-se com a matéria informe. O cuidado faz com que o espírito dê forma a um corpo concreto, dentro do tempo, aberto à história e dimensionado para a utopia (Saturno). É o cuidado que permite a revolução da ternura, ao tornar prioritário o social sobre o individual e ao orientar o desenvolvimento para a melhoria da qualidade de vida dos humanos e de outros organismos vivos. O cuidado faz surgir o ser humano complexo, sensível, solidário, cordial, conectado com tudo e com todos no universo.


cuidado imprimiu a sua marca registada em cada porção, em cada dimensão e em cada dobra escondida do ser humano. Sem o cuidado o humano far-se-ia inumano.


Tudo o que vive precisa de ser alimentado. Assim, o cuidado, a essência da vida humana, precisa também de ser continuamente alimentado. As ressonâncias docuidado são a sua manifestação concreta nos vários aspectos da existência e, ao mesmo tempo, o seu alimento indispensável. O cuidado vive do amor primordial, da ternura, da carícia, da compaixão, da convivialidade, da medida justa em todas as coisas. Sem cuidado, o ser humano, como um tamagochi, definha e morre.


Hoje, na crise do projecto humano, sentimos a falta clamorosa de cuidado em toda a parte. As suas ressonâncias negativas evidenciam-se pela má qualidade da vida, pela penalização da maioria empobrecida da humanidade, pela degradação ecológica e pela exaltação exacerbada da violência.


Não busquemos o caminho da cura fora do ser humano. O ethos está no próprio ser humano, entendido na sua plenitude que inclui o infinito. Ele precisa de se voltar para si mesmo e de redescobrir a sua essência, que se encontra no cuidado.

Que o cuidado aflore em todos os âmbitos, que penetre na atmosfera humana e que prevaleça em todas as relações!

cuidado salvará a vida, fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como pátria e mátria de todos nós.

Nenhum comentário:

Postar um comentário