A relação com a realidade concreta, com os seus cheiros, cores, frios, calores, pesos, resistências e contradições, é mediada pela imagem virtual, que é somente imagem. O pé já não sente o macio da relva verde. A mão já não pega num punhado de terra escura. O mundo virtual criou um novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque, do tacto e do contacto humano.
Essa anti-realidade afecta a vida humana naquilo que ela possui de mais fundamental: ocuidado e a compaixão. Mitos antigos e pensadores contemporâneos dos mais profundos ensinam-nos que a essência humana não se encontra tanto na inteligência, na liberdade ou na criatividade, mas basicamente no cuidado. O cuidado é, na verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência. No cuidado encontra-se oethos fundamental do humano. Quer dizer, no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das acções um recto agir.
O tipo de sociedade do conhecimento e da comunicação que temos desenvolvido nas últimas décadas ameaça a essência humana. Porventura, não ignorou ela as pessoas concretas com as feições dos seus rostos, com o desenho das suas mãos, com a irradiação da sua presença, com as suas biografias marcadas por buscas, lutas, perplexidades, fracassos e conquistas?
Não colocou sob suspeita e até difamou como obstáculo ao conhecimento objectivo, o cuidado, a sensibilidade e o enternecimento, realidades tão necessárias, sem as quais ninguém vive e sobrevive com sentido? Na medida em que avança tecnologicamente na produção e serviço de bens materiais, será que não produz mais empobrecidos e excluídos, quase dois terços da humanidade, condenados a morrer antes do tempo?
Não colocou sob suspeita e até difamou como obstáculo ao conhecimento objectivo, o cuidado, a sensibilidade e o enternecimento, realidades tão necessárias, sem as quais ninguém vive e sobrevive com sentido? Na medida em que avança tecnologicamente na produção e serviço de bens materiais, será que não produz mais empobrecidos e excluídos, quase dois terços da humanidade, condenados a morrer antes do tempo?
Onde é que o cuidado aparece na nossa sociedade? Em algo de muito vulgar, de quase ridículo, mas extremamente indicativo: no tamagochi.
O que é o tamagochi ? É uma invenção japonesa dos inícios de 1997. Um porta-chaves electrónico, com três botões abaixo do écran de cristal, que alberga dentro de si um bichinho de estimação virtual. O bichinho tem fome, come, dorme, cresce, brinca, chora, fica doente e pode morrer. Tudo depende do cuidado que recebe ou não do seu dono ou dona. O tamagochi dá muito trabalho. Como uma criança, a todo momento deve ser objecto de cuidado; caso contrário, reclama com o seu bip; se não for atendido, corre risco. E quem é tão sem coração a ponto de deixar um bichinho de estimação morrer? O brinquedo transformou-se numa mania e tem mudado a rotina de muitas crianças, jovens e adultos, que se empenham em cuidar do tamagochi, dar-lhe de comer, deixá-lo descansar e fazê-lo dormir. O cuidado faz até o milagre de o ressuscitar, caso tenha morrido por falta de atenção e de cuidado.
Bem disse um perspicaz cronista carioca: “Solidão, o seu cognome é tamagochi“. Ocuidado pelo bichinho de estimação virtual denuncia a solidão em que vive o homem/a mulher da sociedade da comunicação nascente.
Mas anuncia também que, apesar da desumanização de grande parte da nossa cultura, a essência humana não se perdeu. Ela está aí na forma do cuidado, transferido para um aparelho electrónico, em vez de ser investido nas pessoas concretas à nossa volta: na avó doente, num colega de escola deficiente físico, num menino ou menina da rua, no velhinho que vende o pão matinal, nos pobres e marginalizados das nossas cidades ou até mesmo num bichinho vivo de estimação, seja um hamster, um papagaio, um gato ou um cachorro.
Mas anuncia também que, apesar da desumanização de grande parte da nossa cultura, a essência humana não se perdeu. Ela está aí na forma do cuidado, transferido para um aparelho electrónico, em vez de ser investido nas pessoas concretas à nossa volta: na avó doente, num colega de escola deficiente físico, num menino ou menina da rua, no velhinho que vende o pão matinal, nos pobres e marginalizados das nossas cidades ou até mesmo num bichinho vivo de estimação, seja um hamster, um papagaio, um gato ou um cachorro.
O cuidado serve de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador de um novo paradigma de convivialidade. É o que vamos propor no presente livro.
Sonhamos com um mundo ainda por vir, onde não vamos precisar mais de aparelhos electrónicos com seres virtuais para superar a nossa solidão e realizar a nossa essência humana de cuidado e de gentileza. Sonhamos com uma sociedade mundializada, na grande casa comum, a Terra, onde os valores estruturantes se construirão em redor do cuidado com as pessoas, sobretudo com os culturalmente diferentes, com os penalizados pela natureza ou pela história. Cuidado com os espoliados e excluídos, as crianças, os velhos, os moribundos, cuidado com a nossa grande e generosa Mãe, a Terra. Sonhamos com o cuidado assumido como o ethosfundamental humano e como compaixão imprescindível para com todos os seres da criação.
Por toda a parte surgem sintomas que sinalizam grandes devastações no planeta Terra e na humanidade. O projecto de crescimento material ilimitado, mundialmente integrado, sacrifica 2/3 da humanidade, extenua recursos da Terra e compromete o futuro das gerações vindouras. Encontramo-nos no limiar de bifurcações fenomenais. Qual é o limite de suportabilidade do super-organismo Terra? Estamos a rumar na direcção de uma civilização do caos?
Formalizando a questão, podemos dizer: mais do que o fim do mundo, estamos a assistir ao fim de um tipo de mundo. Enfrentamos uma crise civilizacional generalizada. Precisamos de um novo paradigma de convivência que funde uma relação mais benfazeja para com a Terra e inaugure um novo pacto social entre os povos, no sentido do respeito e da preservação de tudo o que existe e vive. Só a partir desta mutação, faz sentido pensarmos em alternativas que representem uma nova esperança.
O cuidado das nossas mães e avós
Existem figuras que concentram e irradiam cuidado de maneira privilegiada: as nossas mães e as mães das nossas mães, as nossas avós. Não precisamos de pormenorizar essa experiência. Ela é fundamental em cada pessoa, pois o primeiro continente que a criança conhece é a sua própria mãe. Ser mãe é mais do que uma função; é um modo-de-ser que engloba todas as dimensões da mulher-mãe, o seu corpo, a sua psique e o seu espírito. Com o seu cuidado e carinho, a mãe continua a gerar os filhos e as filhas durante toda a vida. Mesmo que tenham morrido, sempre permanecerão no seu coração materno. Nos momentos de perigo, são invocadas como referência de confiança e de salvação. É através das mães que cada um aprende a ser mãe de si mesmo, na medida em que aprende a aceitar-se, a perdoar as próprias fraquezas e a alimentar o sonho de um grande útero acolhedor de todos. Representam também o modo de ser mãe as educadoras e os educadores que se devotam ao crescimento humano, mental e espiritual dos educandos, as enfermeiras que cuidam dos seus doentes e tantas outras pessoas que anonimamente se desvelam no cuidado de alguém.
Jesus, um ser de cuidado
Jesus de Nazaré, ao lado de Buda, é uma das figuras religiosas que mais encarnam o modo-de-ser-cuidado. Revelou à humanidade o Deus-cuidado, experimentando Deus como Pai e Mãe divinos que cuidam de cada cabelo da nossa cabeça, da comida dos pássaros, do sol e da chuva para todos (cf. Mt 5,45; Lc 21,18). Jesus mostrou cuidadoespecial com os pobres, os famintos, os discriminados e os doentes. Enchia-se de compaixão e curava a muitos. Facto inusitado para a época, associou a si várias mulheres como discípulas (Lc 8,2-3). Cultivou um amor terno para com as amigas Marta e Maria (Jo 11,20-28; Lc 10,38-42).
Fez da misericórdia a chave da sua ética. É pela misericórdia que os seres humanos chegam ao Reino da Vida; sem a misericórdia, não há salvação para ninguém (Mt 25,36-41). As parábolas do bom samaritano que mostra compaixão pelo caído na estrada (Lc 10,30-37) e a do filho pródigo acolhido e perdoado pelo pai (Lc 15,11-32) são expressões exemplares de cuidado e de plena humanidade.
Morrendo na cruz, cuida dos ladrões crucificados ao seu lado e cuida de sua mãe, entregando-a aos cuidados do discípulo predilecto João (Jo 19,26-27). Jesus foi um ser de cuidado. O evangelista Marcos diz com extrema finura: “Ele fez bem todas as coisas; fez surdos ouvir e mudos falar.” (Mc 7,37). Teve cuidado com a vida integral.
Que alquimia forjará o elo entre Júpiter, Tellus/Terra e Saturno? Que energia articulará a transcendência e a imanência, a história e a utopia, a luta pela justiça e a paz, para que construam o humano plenamente?
É o cuidado que enlaça todas as coisas; é o cuidado que traz o céu para dentro da terra e coloca a terra dentro do céu; é o cuidado que fornece o elo de passagem da transcendência para a imanência, da imanência para a transcendência e da história para a utopia. É o cuidado que confere força para buscar a paz no meio dos conflitos de toda a ordem. Sem o cuidado que resgata a dignidade da humanidade condenada à exclusão, não se inaugurará um novo paradigma de convivência.
O cuidado é anterior ao espírito (Júpiter) e ao corpo (Tellus). O espírito humaniza-se e o corpo vivifica-se quando são moldados pelo cuidado. Caso contrário, o espírito perde-se nas abstracções e o corpo confunde-se com a matéria informe. O cuidado faz com que o espírito dê forma a um corpo concreto, dentro do tempo, aberto à história e dimensionado para a utopia (Saturno). É o cuidado que permite a revolução da ternura, ao tornar prioritário o social sobre o individual e ao orientar o desenvolvimento para a melhoria da qualidade de vida dos humanos e de outros organismos vivos. O cuidado faz surgir o ser humano complexo, sensível, solidário, cordial, conectado com tudo e com todos no universo.
O cuidado imprimiu a sua marca registada em cada porção, em cada dimensão e em cada dobra escondida do ser humano. Sem o cuidado o humano far-se-ia inumano.
Tudo o que vive precisa de ser alimentado. Assim, o cuidado, a essência da vida humana, precisa também de ser continuamente alimentado. As ressonâncias docuidado são a sua manifestação concreta nos vários aspectos da existência e, ao mesmo tempo, o seu alimento indispensável. O cuidado vive do amor primordial, da ternura, da carícia, da compaixão, da convivialidade, da medida justa em todas as coisas. Sem cuidado, o ser humano, como um tamagochi, definha e morre.
Hoje, na crise do projecto humano, sentimos a falta clamorosa de cuidado em toda a parte. As suas ressonâncias negativas evidenciam-se pela má qualidade da vida, pela penalização da maioria empobrecida da humanidade, pela degradação ecológica e pela exaltação exacerbada da violência.
Não busquemos o caminho da cura fora do ser humano. O ethos está no próprio ser humano, entendido na sua plenitude que inclui o infinito. Ele precisa de se voltar para si mesmo e de redescobrir a sua essência, que se encontra no cuidado.
Que o cuidado aflore em todos os âmbitos, que penetre na atmosfera humana e que prevaleça em todas as relações!
O cuidado salvará a vida, fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como pátria e mátria de todos nós.
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